Por quê Rússia declarou guerra à Ucrânia?
Os dias intensos de negociação entre potências ocidentais e os russos não foram capazes de evitar um conflito. Na madrugada desta quinta-feira, 24 de fevereiro, a Rússia iniciou bombardeios que se espalharam por várias cidades da Ucrânia ao longo do dia, após quatro meses de crise com o Ocidente.
Dessa forma, em pronunciamento feito às 5h45 (horário local), o presidente Vladimir Putin anunciou uma operação militar como forma de “proteger a população de Donbass”.
No local, ficam duas repúblicas separatistas pró-Rússia (Donetsk e Luhansk), que foram reconhecidas como independentes pelo chefe do Kremlin nesta semana, em uma cerimônia de assinatura exibida pela televisão estatal.
O avanço das tropas russas sobre o sudeste da Ucrânia gerou uma forte reação da comunidade internacional. Pelo Twitter, Volodímir Zelenski, presidente da Ucrânia, disse que está criando uma “coalização anti-Putin”.
“Falei com Ursula von der Leyen (presidente da Comissão Europeia), Emmanuel Macron (presidente da França), Karl Nehammer (chanceler da Áustria) e Recep Tayyip Erdoğan (presidente da Turquia) sobre sanções concretas e assistência concreta para nossos militares. Estamos aguardando uma ação decisiva.”
O conflito que o mundo observa agora acontece em uma região ucraniana próxima da Rússia, que compunha a antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Fernando Brancoli, professor de relações internacionais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), diz que a relação entre Rússia e Ucrânia começou a se desgastar mais após a dissolução da URSS.
Isso porque, logo após a fragmentação da União em várias nações, os Estados Unidos decidiram agregar mais países à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e com isso, iniciou-se um debate para a entrada da Ucrânia no bloco.
Brancoli afirma que o assunto ficou congelado durante anos – até que, em 2014, após uma revolução, quem assumiu o poder na Ucrânia foi Petro Poroshenko. Sendo uma liderança mais próxima do Ocidente, sua eleição voltou a chamar a atenção de separatistas. Tal fato juntamente com a anexação da Crimeia, região de controle ucraniano, no mesmo ano, piorou ainda mais a relação entre os dois países.
Os anos se passaram e a situação parecia controlada, até que os debates envolvendo a entrada da Ucrânia na Otan voltaram a ganhar tração após a eleição de Zelenski, atual presidente ucraniano, também bastante próximo dos Estados Unidos e da Europa.
Segundo Brancoli, com a economia fragilizada pela pandemia de coronavírus e a política em crise, acompanhada de um avanço sistemático da Otan sobre a Ucrânia, Putin viu incentivos internos e externos para tentar aumentar a popularidade de seu governo retomando uma área que ele entende que sempre foi bastante próxima da Rússia.
Desde novembro do ano passado, os russos passaram a aumentar as tropas na região de fronteira com a Ucrânia. O discurso, na época, era de que os soldados russos posicionados na fronteira estavam apenas fazendo exercícios militares, enquanto Joe Biden, presidente dos Estados Unidos, alertava para movimentos “incomuns” na região fronteiriça.
Nos últimos dias, os movimentos passaram a ficam mais agressivos e calculados, pois já na última segunda-feira, 21 de fevereiro, Putin informou que reconheceu como países independentes duas áreas separatistas da Ucrânia, Donetsk e Lugansk, após solicitação pública dos líderes de ambas.
Sendo assim, esse reconhecimento foi visto como uma violação flagrante do direito internacional, segundo a União Europeia, e um primeiro passo para justificar uma invasão.
O passo seguinte foi Putin dizer, na última segunda-feira, 21 de fevereiro, que enviaria tropas “em missão de paz” para garantir a segurança das áreas separatistas. Na mídia local, os russos receberam a informação de que havia um “genocídio” contra a população russa nessas áreas realizado por tropas ucranianas.
Nesse meio tempo, a comunidade internacional começou a reagir com uma série de sanções. O presidente americano, por exemplo, cortou o governo da Rússia do financiamento ocidental e anunciou que instituições financeiras e a elite russa também sofreriam restrições, na última terça-feira, 22 de fevereiro.
As medidas anunciadas por uma série de potências, no entanto, não fizeram Putin recuar. Após quatro meses de intensa negociação, o presidente russo optou por invadir a Ucrânia na madrugada desta quinta-feira, 24 de fevereiro, no horário de Brasília.
Apesar de o número grande de sanções anunciadas pela Europa e pelos Estados Unidos nos últimos dias e que devem se intensificar nas próximas horas, uma vez que a Rússia tem mais condições de suportar as medidas anunciadas do que o Ocidente de ficar sem recursos.
Para o professor de direito internacional da Universidade de São Judas Thiago Nogueira, a razão é que a Europa é fortemente dependente do gás natural e do petróleo produzidos pela Rússia. Nesse sentido, diz, a União Europeia deverá avaliar o risco que corre de ficar sem fornecimento – especialmente de gás natural, muito utilizado na calefação das casas.
Outro detalhe: segundo Nogueira, o acesso a recursos naturais é considerado estratégico, conforme traz a Organização Mundial do Comércio (OMC). Logo, se o fornecimento de gás natural for interrompido, isso não afetaria apenas a economia europeia, mas seria considerado uma questão de estratégia regional.
O professor de direito internacional chama a atenção também para o fato de que o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), de que a Rússia faz parte, não deve conseguir aprovar nenhuma resolução que condene a atitude russa.
Para ele, as próximas sanções devem seguir mais na linha de afetar dirigentes de empresas russas e depois algo em torno de restrições de exportação e de importação, especialmente de commodities, o que pode afetar bastante a economia da Rússia.:
“A Rússia tem carta na manga porque a Europa, e especialmente a Alemanha, não tem substituto para o gás natural russo. Vira uma chantagem do ponto de vista econômico.”
Apesar de considerar muito difícil que haja uma sanção envolvendo o gás natural, o professor da UFRJ diz que isso não significa que não haverá impacto nos preços.
Ele explica que depois de o petróleo atingir nesta quinta-feira US$ 100 o barril, maior valor em sete anos, a expectativa é de que a cotação da commodity siga subindo, o que pode aumentar ainda mais as pressões inflacionárias ao redor do mundo – inclusive no Brasil.
Com as relações entre a Rússia e o Ocidente embaçadas, os russos devem aproveitar o momento para intensificar a estratégia de se aproximar mais dos chineses, na visão de Brancoli.
Segundo o professor, acredita-se que há agora uma “janela de oportunidade” para a Rússia:
“A China é uma potência militar, do ponto de vista prático. Pode ser bem interessante para a Rússia.”
Não é à toa, afirma, a China vem evitando tomar lados e não fez qualquer tipo de movimentação mais intensa diante do conflito:
“Eles têm a questão da província de Taiwan, que também tem um caráter separatista. Acho difícil alguém se posicionar nesse caso.”